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Uma Pequena Vitória

abril 6, 2017

29 de Março, 2005

Michel se sentia diferente dos outros meninos, não conseguia interagir com ninguém em sua classe, e quase toda noite chorava silenciosamente até conseguir pegar no sono. Seus desejos mais íntimos não eram como os das pessoas consideradas normais. Nunca havia tocado noutro rapaz, muito menos beijado algum homem, mas tinha certeza de que sua orientação sexual não era como a de seus colegas. Para ele, não havia nenhuma dúvida, seria uma questão de tempo até que tudo viesse à tona.

Durante quase três meses, Michel acompanhou o programa Big Brother Brasil sem perder nenhum episódio. Descobriu em Jean Wyllys um ídolo, por assumir em rede nacional sua sexualidade, de forma tão valente e destemida. A cada intervalo comercial, ouvia calado às críticas de sua mãe sobre o oportunismo barato do participante. Desde então, torcia fervorosamente pelo professor baiano e acreditava numa possível vitória, que traria muito respeito e também desmistificaria a homossexualidade.

A cada paredão, Michel fazia uma nova promessa, para que Jean permanecesse no programa tempo suficiente para mudar a cabeça das pessoas e transformasse preconceitos em respeito, amor e companheirismo. Sabia que seria uma luta difícil para um exército de um homem só, mas nunca impossível. Apesar de ter somente quatorze anos, já tinha uma visão muito abrangente do mundo e de seus valores deturpados.

Quando Jean foi indicado para a eliminação ao lado de Pink, Michel prometeu a si mesmo que se o professor não saísse naquela noite e posteriormente se tornasse o vencedor da competição, ele iria se assumir gay perante toda a família. Não importava se iriam aceitar ou não sua declaração, ele só queria que seu ídolo mostrasse a todos que dar o cu não torna ninguém um monstro. Pois Jean não só ficou na casa, como seguiu para a final, ao lado de Grazi.

E depois de uma torturante noite de terça-feira, Michel vibrou explosivamente com a vitória de Jean. Gritou por toda a casa, correu pela vizinhança e fez com que todos soubessem de sua alegria naquele momento tão aguardado. Com a camiseta encharcada de suor e um semblante de alívio, o garoto voltou para casa feliz da vida, já imaginando as palavras que iriam dar início ao seu comunicado.

Depois de tomar um banho quente, pentear os cabelos e escovar os dentes, Michel desceu as escadas e foi até a sala de estar, onde seus pais conversavam sobre amenidades e comiam as roscas recheadas com chocolate que sobraram no domingo de Páscoa. Com um sorriso no rosto, o menino perguntou se podia interromper a conversa por alguns segundos, enquanto puxava uma cadeira.

Sem ouvir um pio sequer de seus pais, Michel fez um falou sobre suas inclinações sexuais, assim como todos os problemas que havia enfrentado até então, por ter de viver escondendo sua verdadeira natureza. Com lágrimas nos olhos, ele terminou seu monólogo depois de quase vinte minutos. Deu um beijo no rosto da mãe, e ouro na mão direita do pai. Enxugou o rosto com a manga de seu pijama, pediu licença aos pais e foi para seu quarto.

Na manhã seguinte, o menino foi acordado pela mãe, num horário incomum. Lavou o rosto, escovou os dentes e vestiu uma roupa que estava arrumada em cima da cômoda. Sem nenhuma explicação, seu pai o levou até o carro, e pediu para que entrasse, sem fazer muitas perguntas.

Michel foi internado numa instituição psiquiátrica, onde permaneceu por duas semanas, tomando choque nas têmporas. Por mais que o mundo parecesse aceitar as diferenças exibidas na televisão, alguns conceitos ainda não haviam sido muito bem fundamentados para que ele criasse tantas expectativas positivas acerca de suas diferenças.

06 de Abril, 2017

“Estou constrangido por participar dessa farsa, dessa eleição indireta, conduzida por um ladrão,  urdida por um traidor, conspirador, e apoiada por torturadores, covardes, analfabetos políticos e vendidos. Em nome dos direitos da população LGBT, do povo negro exterminado das periferias, dos trabalhadores da cultura, dos sem teto, dos sem terra, eu voto não ao golpe. E durmam com essa, canalhas!”

Após votar contra o impeachment da então presidente Dilma Rousseff, em abril de 2016, Jean Wyllys cuspiu em Jair Bolsonaro e o Conselho de Ética abriu um processo para apurar o caso. O deputado Ricardo Izar (PP-SP), relator do processo, havia proposto a suspensão do mandato de Jean Wyllys por 30 dias, mas o parecer foi rejeitado por 9 votos a 4. Após a rejeição do relatório, a comissão aprovou um parecer alternativo, apresentado por Julio Delgado (PSB-MG), que recomendou a advertência ao deputado do PSOL. Para Delgado, o cuspe representou uma “ofensa moral”, mas não foi premeditado. Após a decisão do conselho, Jean Wyllys divulgou uma nota:

“No dia da sessão do impeachment, tive uma reação espontânea, humana, contra os xingamentos e agressões que há anos recebo na Câmara por conta da minha orientação sexual e das minhas posições políticas. Nunca antes na vida tinha cuspido em alguém (e não é a forma em que eu costumo agir, nem na Câmara, nem na minha vida privada), mas sou humano, tenho sangue nas veias, e o grau de violência, desrespeito e ofensas que recebo desde que estou deputado é intolerável. […] O Conselho de Ética, hoje, finalmente, decidiu não suspender meu mandato. A pressão social valeu a pena. É uma vitória da democracia, e, sobretudo, das pessoas que se mobilizaram para impedir que um acordo de bastidores na Câmara calasse nossa voz. Obrigado!”

Michel se emocionou com essa pequena (porém significativa) vitória e compartilhou a notícia em seu Facebook.  Com os olhos marejados, ele relembrou da covardia cometida pelos seus pais, em nome da religião e da ignorância. Faz quase dez anos que eles não se falam. Michel até telefona para a casa dos pais, seja nos aniversários, Natal ou um feriado qualquer, mas eles desligam ao ouvir sua voz.

Ao completar a maioridade, ele saiu de casa e foi morar com Rúbio, que conheceu pouco depois de terminar o ensino médio. Os dois estão juntos até hoje e são donos de um bistrô no Bairro de Fátima. Esta noite, eles saíram com mais uns amigos para celebrar o respeito, o amor e o companheirismo. Entre rodadas de chope e bolinhos de bacalhau, um garçom desligou a TV que estava sintonizada no Big Brother Brasil. Ninguém percebeu.

Beijos Que Marcam

março 16, 2017

Otávio trabalha no mesmo setor que Danieli e há meses tentava convida-la para sair, mas sempre tinha alguma coisa atrapalhando. Depois de muita insistência, finalmente conseguiram combinar todos os detalhes e marcaram de encontrar-se às dez horas da noite, num famoso restaurante da zona sul. O jantar estava fabuloso, o restaurante era bárbaro, a conversa fluía com descontração e todos os adjetivos do mundo não seriam capazes de definir o quanto tudo estava sendo perfeito, até que ele a beijasse, já dentro de seu carro.

À princípio, o beijo estava delicioso. Otávio sabia conduzir o clima de romance com maestria, sendo carinhoso e suave. Aos poucos, as coisas começaram a esquentar e os vidros já estavam embaçados. Suas mãos ansiavam pelo momento em que arrancariam as roupas um do outro quando, sem motivo aparente, Danieli sentiu algo estranho, solto em sua boca.

Interrompendo o beijo, ela o afastou delicadamente com uma mão, enquanto disfarçadamente retirava o objeto da boca. Para sua surpresa, o Otávio havia perdido uma prótese dentária durante o frenético duelo de línguas. Sem graça, ele disse que já estava acostumado com aquilo, colocando os dentes no bolso da camisa e partindo novamente para o ataque.

Mais do que imediatamente, Danieli o impediu de continuar com a sessão roto-rooter. Estava enojada com o incidente que acontecera e pediu para ser levada para casa. Ambos ficaram calados até que ele a deixou na porta do prédio, pertinho do Norte Shopping. Despediram-se com um cumprimento formal e passaram o resto da semana se evitando, na empresa que trabalham.

Danieli ficou com um pouco de remorso, mas puxa vida! A prótese preenchia o lugar dos quatro dentes da frente, na arcada superior. Otávio, coitado, passou as horas de almoço pesquisando orçamentos em clínicas de implantes, mas até o momento não encontrou nenhum compatível com seu bolso.

Demência Progressiva

fevereiro 16, 2017

Edmunda não sentia a fricção de um pênis dentro de sua vagina há quase trinta anos, desde que sua filha mais nova nasceu. Erivelto, seu marido, parece ter perdido o gosto por ela, ou ficou impotente mesmo, não se sabe. E a vida da mulher foi ficando cada vez mais amarga, triste e cheia de demência. Até que um dia ela surtou, e começou a falar sozinha pelos cantos.

Quando seu segundo neto nasceu, a louca começou a ter alguns surtos psicóticos, descontando toda sua ira na filha do meio, Rosália, dizendo que a maldita não servia nem para lhe dar netinhos. Isso foi o suficiente para que Edmunda tornasse a vida dela num inferno. Desde minhocas nas garrafas de água e terra de cemitério nas fronhas, até bosta de cachorro espalhada pelo sofá: a velha não deixava a coitada em paz.

Numa certa noite, foi encontrada pelo genro, completamente nua, plantando bananeira na cozinha enquanto comia os peixinhos que havia tirado do aquário. Ao ser questionada, disse estar “louca do cu”. Depois de se reunirem, as três filhas decidiram internar a insana num sanatório, temendo que a situação ficasse ainda pior. Sem reagir, ela foi carregada pelos para-médicos até a ambulância, onde foi levemente sedada, como medida de segurança.

Três anos depois, os psiquiatras determinaram que Edmunda havia se recuperado de seus surtos psicóticos, e assinaram um atestado de alta. Finalmente, ela estaria livre para conhecer os outros netinhos que haviam nascido depois de sua internação. Um pouco diferente do que costumava ser, aos poucos ela foi se reintegrando à sociedade. Mostrou-se solidária, inclusive, ao saber que a Rosália não poderia engravidar.

E foi num calorento domingo de Janeiro que Edmunda decidiu mostrar o quanto estava arrependida por tudo o que havia feito de mal para a filha do meio. Chamou todos os seus netinhos, e os carregou para o jardim de sua casa, com a desculpa de que iria mostrar a eles como se colhe acerolas. Mandou as crianças fecharem os olhos, beberem um pouco de refresco e colocarem as mãozinhas para trás. Ao perceber que não seria interrompida por ninguém, Edmunda arriou as calças…

Duas horas depois, seu marido a encontrou desmaiada em cima das margaridas, rodeada pelos seis netinhos, mortos, roxos, sufocados. Desesperado, Erivelto chamou por socorro, e foi prontamente atendido pelas filhas, que entraram em choque ao ver tal cena. Sem saber o que fazer, ligaram para os bombeiros, e esperaram a chagada de uma viatura. Rosália, ajoelhada, batia com a cabeça no chão.

Levando em consideração que o netinho mais velho ainda estava deitado no meio de suas pernas, não houve dúvida em se concluir que Edmunda havia sufocado todas as crianças, sedadas com alguma droga misturada no refresco, enfiando suas cabeças dentro da própria vagina, uma a uma. Revoltados, os bombeiros se recusaram a prestar socorro à velha, deixando-a ao relento.

Como a própria alegou insanidade temporária, foi condenada a viver sedada numa cela do manicômio municipal, até que fosse possível haver um julgamento justo. A filha do meio, traumatizada pela cena no jardim, separou-se do marido e foi morar numa comunidade evangélica, em algum lugar de Brasília. As mães das crianças mortas tornaram-se ativistas do movimento em prol da pena de morte para crimes hediondos. E Erivelto, o marido da demente, finalmente pôde assumir seu caso de trinta anos com o dono da quitanda, que ficava logo na esquina, e vendia o frango-cambalhota mais gostoso do bairro.

Parágrafos Soltos de Contos Inacabados [Pt 06]

janeiro 11, 2017

[…] as duas se atracaram, ali mesmo, no meio do público. Beijo na boca, mão na barata. Beijo no peito, mão na bunda. Beijo na nuca, mão nas tetas. O povo, completamente acrílico, olhava para aquele espetáculo lesbo-erótico, achando que esse tipo de coisa só existia na nos filmes da Sexta Sexy. Acostumado com aquelas demonstrações públicas de tesão, Roschério esfregava freneticamente os cabelos das meninas, fazendo mais volume em seus dreadlocks ensebados. Lêndeas e piolhos felizes saltitavam de uma cabeça para a outra, enquanto ele tentava, sem sucesso, fazer parte daqueles beijos. Foi então que chegou Hercília, ex-namorada de Daniela, segurando uma garrafa da 51. […]

Fast-Forward

dezembro 19, 2016

Deitados sob um lençol de cetim azul-turquesa, dois rapazes trocavam carícias e juras de amor. Eles haviam se conhecido na fila de uma boate e, duas horas depois, já estavam completamente apaixonados. Dormiram agarradinhos, de conchinha, sentindo o abraço quente um do outro, embalados pelo ruído mútuo de sua respiração.

O moreno parrudo, ligeiramente mais afeminado, acordou com um raio de sol em sua face. Ele se espreguiçou e olhou para o lado, tateando o lençol em busca de seu mais novo amor pra vida toda. Ao invés de um homem nu, ele encontrou um pedacinho de papel, onde se lia:
“Desculpa a sinceridade, cara. Mas quando te vi dormindo de olhos abertos e babando no travesseiro, acabei broxando. Sorte aê. Abraço”.

E assim, o mundo se livrou de mais um casalzinho que se trataria por apelidinhos fofos no diminutivo, onde ambos fariam tatuagens iguais na panturrilha e usariam as mesmas cinquenta hashtags nas fotos do Instagram.

Os Sete Pecados

novembro 1, 2016

Véspera de feriado e a Vila da Penha estava um agito só. Sentada no portão de casa com algumas vizinhas, depois de tomar cinco latinhas de Itaipava, Dona Odete começou a falar sobre o começo da humanidade:

“Se Deus realmente fosse responsável por tudo que dizem por aí, poderíamos dizer que ele é um cínico pervertido. Depois de criar Adão, ele teria percebido que era preciso algo mais para tornar aquele reality-show divino um pouco menos insosso. Numa crise de insanidade, ele teria arrancado uma de costelas de seu pimpolho para criar a mulher. Erro maiúsculo. Assim nascia Eva, com protuberâncias arredondadas na parte superior do tórax e uma cavidade úmida no meio das pernas.

Em tese, ele queria que o casalzinho se multiplicasse e povoasse todo o planeta. Mas os dois só queriam saber de jogar dominó, beber suquinho de acerola e matar coelhinhos com espetinhos de bambu [nem preciso dizer as crueldades que eles faziam com os bichinhos, néam?]. Daí, ele ainda inventou a tentação: uma forma de mostrar aos pombinhos que era preciso enfiar a varinha de carne dele no buraquinho molhadinho dela para acontecer a mágica da procriação. E como não podia deixar de ser, a tentação veio em forma de cobra: fálica, libidinosa, rija, suculenta e sinuosa.

Eva não se interessou, olhou com desdém e voltou correr nua pelos prados virgens, sem se importar com os espinhos que arranhavam seus mamilos e despenteavam seus cabelos levemente aloirados. Todos sabem que mulher, desde todo o sempre, é uma aporrinhação. Adão ficou de saco cheio e começou a puxar papo com a cobra. Falou sobre o clima, depois passou para o futebol e enfim descambou para a sacanagem. Não é de se espantar que o homem tenha sucumbido àquela tentadora criatura.

A cobra, muito astuta, disse a ele que tinha um plano para acabar com aquela palhaçada toda. Se Adão provasse que Eva era uma inútil, ele ficaria com o paraíso só para ele. Logicamente, o idiotinha caiu que nem um pato na armadilha. O plano, então, foi posto em prática. Adão chupou a cabecinha da cobra, esfregou-a por todo o rosto, colocou-a entre as nádegas e rebolou convulsivamente. Adão tinha um cu guloso, sedento e esbaforido! Engoliu tudinho sem derramar sequer uma lágrima, só para mostrar a Deus que não precisava de mulher nenhuma para se divertir. Foi nesse exato momento que Deus teve um insight.

A perfeição é chata, boring, insossa. Ele teria que criar subterfúgios para que a existência fosse mais agitada, mais dinâmica e desse mais Ibope. Adão e Eva estavam brigados e a perpetuação daquele experimento estava ameaçada. Tamanha sabotagem não podia continuar destruindo planos divinos. Então ele pensou: porque não criar a vergonha, a culpa e… o pecado? Com essa coleção de maldições, a vida na Terra deslancharia de vez. E assim foi feito.

Afastada de seu companheiro, Eva começou a sentir os efeitos nocivos da gravidade. Seus seios já não apontavam mais para os céus, e seus lábios vaginais pendiam até quase o meio das coxas, por conta da constante introdução de objetos roliços em sua boceta. Foi quando ela usou as folhas de parreira para se cobrir, que a vergonha surgiu. Mesmo que não tivessem mais ninguém ao seu redor para rir das pelancas muxibentas…

A culpa, todos nós conhecemos. Seus primeiros sinais foram quando Adão percebeu que tinha feito merda, ao ser pego de surpresa pela malditeza da cobra, que o deflorou sem dó nem piedade e depois partiu sem deixar o número do telefone. Aquela sensação estranha, meio que um aperto no esôfago, foi adotada pela Igreja Católica como o maior dogma de todos os tempos. Não existe um cristão que não se sinta culpado pela morte de Jesus a cada punheta, trepada ou espiadela pelo buraco da fechadura.

Com uma desculpa esfarrapada, Adão convenceu sua ex-companheira de que aquilo tudo foi só uma fase [ que os psiquiatras posteriormente chamariam de fase oral ]. Ela não acreditou na historinha, mas resolveu voltar ao paraíso. Anos se passaram e eles, finalmente, descobriram o divino jogo de encaixes que seus órgãos sexuais eram capazes de proporcionar. Deus só precisou intervir novamente quando os dois inventaram a sodomia. Os danadinhos não queriam saber de outra coisa, e passavam dias e dias naquela atividade infrutífera. Foi dada, então, a última cartada…

Para exterminar de vez com qualquer melindre daqueles protótipos de seres humanos, vieram os pecados. Uma espécie de punição por conta do atraso no cronograma cósmico. Não um. Nem dois. Nem três. Nem quatro. Nem cinco. Nem seis… Foram sete! Sete pecados para punir aqueles sodomitas pervertidos.

Só assim, na base a ignorância, é que Deus teria conseguido colocar os dois na linha. Ambos foram castigados por cada pecado que cometeram, sofreram as conseqüências por seus atos e foram agraciados com mais uma chance de espalhar vida pelo planeta azul. Como sabemos, o castigo não surtiu muito efeito nas gerações subseqüentes.”

Curiosidade

outubro 18, 2016

A pequena Laura gostava de brincar sozinha, não suportava a companhia de outras crianças. Sempre que podia, sentava-se no pomar do sítio e ficava lendo seus livros de contos-de-fadas, debaixo de uma amoreira, por horas a fio. Sempre que voltava para dentro de casa, sua mãe brigava por causa dos chinelos manchando o piso acarpetado.

Nos dias de chuva, uma forte melancolia apertava seu pequeno coração, pois era impossível sair para brincar no meio de toda aquela lama que se formava por baixo do gramado. Laura, então, debruçava-se na janela, apoiando os bracinhos numa almofadinha vermelha, esperando que o sol aparecesse.

Em dias como aquele, sentia saudades de sua avó, que tinha morrido há dois anos, e era sua melhor amiga. Era impressionante como ela conseguia lidar tão bem com pessoas de mais idade. Suas conversas eram tão cheias de emoção e assuntos lúdicos, que qualquer um sentia-se encantado ao conhecer aquela criança.

Certa noite, Laura achou ter visto um disco-voador, pousando bem atrás da colina que ficava ao fundo do sítio. Sem seus pais notarem, saiu escondida pela janela da cozinha, munida com uma lanterna e um cobertor azul. Estava muito escuro lá fora, e ventava forte.

Laura, tomada pela curiosidade, seguiu pelo matagal, procurando por algo desconhecido. Estava muito excitada com a idéia de ser a primeira menina do mundo a fazer contato com seres de outro planeta. Só se podia ouvir o ruído dos grilos e de algumas aves noturnas, além do chacoalhar dos galhos secos ao vento.

Curiosamente, a menina não sentia medo de nada. Sua mente estava tão afoita por novas descobertas, que sequer pensava nos perigos de estar sozinha no meio do mato, àquela hora. Depois de se arranhar em alguns arbustos, Laura viu uma chama reluzente, a poucos metros dali.
Mesmo com as pernas sangrando, seguia adiante, ignorando a dor.

Antes que seus olhinhos pudessem brilhar com a esplendorosa visão, tão esperada durante inúmeras noites em claro, Laura foi atingida por uma forte pancada na nuca, que a derrubou sobre um espesso monte de mato seco. Atordoada e sem poder se mover, a menina não conseguia ver quem havia desferido o golpe, mas pôde ouvir uma voz dizendo:

– “A curiosidade matou o gato, Laura. Na próxima vida, não se esqueça disso.”

Gleyson, Werlei e a Taba

setembro 13, 2016

São Paulo, bairro da Mooca, inverno de 2005.

Que Gleyson era um delinqüente, todo mundo já sabia. Ninguém desconfiava, na verdade, que fosse estúpido. E nesse quesito, ele conseguiu ultrapassar o cúmulo da idiotice. Tudo começou na noite de sábado, quando ele ficou sozinho em casa…

Lá pelas onze horas, seu melhor amigo, Werlei, chegou com a maconha. Loucura total, correram para o sofá para apertar o baseado. As bocas chegavam a espumar de tanta saliva, e vontade de fumar.

Mandaram a fumaça para dentro, se revezando no PC, para ver quem falava mais merda no MSN. Ora um fumava, entrando em órbita. Ora outro dava um trago, alucinando com cachorros possuídos por encostos.

A droga bateu tão forte – era da bôua – que resolveram guardar o resto para a noite seguinte, quando Gleyson ficaria sozinho, mais uma vez. Werlei se encarregou de esconder o prato com as guimbas, enquanto o amigo chorava ao som de Anastasia.

O domingo amanheceu ensolarado, e Gleyson acordou com a tia fazendo um tremendo barulho na cozinha. Ainda com os cabelos tapando os olhos amendoados, ele foi averiguar qual era o motivo de tanto estalo.

“Vai ter bolo”, disse a tia solícita, enquanto batia a massa numa vasilha rosa. Dando de ombros, Gleyson foi tomar seu banho, e depois de pentear as melenas, sentou-se ao PC para conversar com os inseparáveis amigos de internet.

Meia hora depois, ouviu a tia rindo à toa lá na cozinha, toda boba. Sentiu um cheiro familiar, e correu até lá. A coitada estava curtindo uma onda sem nem saber, toda descabelada e com a dentadura quase saltando da boca.

Só então que o projeto de estrupício se tocou que o amigo tapado havia escondido a maconha no forno, e que a tia desligada nem se tocou de tirar aquele objeto estranho lá de dentro. Nunca mais Gleyson deu essa bobeira, e agora fuma a erva até acabar. Só não sabe se esse bolo pode dar onda, mas se der…

Páginas Da Vida: Chirli

agosto 2, 2016

Penha/RJ, Agosto de 2006

“Eu tavo sem dinhêro e num tinho comarranjá mais. Já tavo começâno a passa fômea, sinti as custela aparecêno… Tava foda pra dá dicumê pra crionça, né? Fui pido prus outro um cadinho duquicumê. Minha vizinha, Marilêndea, tavo com o galinheiro cheinho. Num pensei mais de três veiz, pulei lá e peguei umas cinco galinha.
Quando eu tavo colocando elas pra cuzinhá, vivinha da silva, piscou uma lampadinha daquelas de idéia encima da minha cabeça. Perguntei pra Manel se ele tinha tinta preta e o maldito me chamo de maluca. Apelei pra creatchividade, né? Pintei as galinha toda, dexei elas pretinha e fui na casa de macumba vende quenem que fosse galinha preta de macumba. Foi um sucesso só, minina. Hoje eu tenho um galinhêro meu, com as minha galinha que eu depois pinto de preto. As criança tudo agora tem uquicumê. Gabriel tá crecêno bunito de se vê e a cabeçona dele nem parece que é mais grande que das outra. Suelle já ta até de peitinho, aquela vadia. Num demora muito ela me aparece dibarriga e eu metolheaporrada. As gêmia tão bem, tãmem. Mas oquieu me mijo toda é de pensá nas macumba que tão tudo dano errada… Galinha branca pintada de preta num presta, né?”

Chirli: esperta, empreendedora, mãe de família e dona de condomínio no subúrbio carioca.

Parágrafos Soltos de Contos Inacabados [Pt 05]

julho 12, 2016

[…] e sabia que existem pessoas que nascem sorrindo, vivem fingindo e morrem mentindo. Rosalba era tão patética que levou desaforo pra casa e acabou se apaixonando por ele. Daí casaram, tiveram filhos, mudaram para um apartamento menor, cancelaram a Net e, desde então, o jantar se resume a arroz com sardinha em lata. Ela diz que ainda não é feliz, mas solta um risinho bobo quando lembra que água e vento são meio sustento. Foi aí que ela deu de ombros e viu um envelope vermelho entrando por baixo da porta […]